Interpretação dos testes de função tireoidiana


A interpretação dos testes de função tireoidiana (TFT) geralmente é feita de modo simples e direto; entretanto, em certas condições, os resultados laboratoriais dos hormônios tireoidianos (HT) podem ser conflitantes ou incompatíveis com o quadro clínico. Doenças não tireoidianas, gravidez e alguns medicamentos podem afetar o metabolismo extratireóideo, o transporte, a absorção e/ou a ação dos HT, mimetizando uma disfunção tireoidiana. Assim, o conhecimento da fisiologia tireoidiana e dos possíveis interferentes no seu funcionamento auxilia o clínico na interpretação dos testes laboratoriais.

A principal função da tireoide é produzir HT para atender às demandas periféricas. Os dois principais HT são a triiodotironina ou T3 e a tetraiodotironina (tiroxina ou T4). A tireoide normal produz todo o T4 circulante e cerca de 20% do T3. Os demais 80% do T3 circulante provêm da deiodinação periférica do T4, por meio da ação das deiodinases tipo 1 (D1) e tipo 2 (D2). A maior parte da atividade biológica dos HT provém do T3, que tem maior afinidade pelo receptor de HT e é cerca de 4 a 10 vezes mais potente que o T4. Existe ainda a deiodinase tipo 3 (D3), que metaboliza T4 em T3 reverso ou rT3, metabolicamente inativo. Uma vez liberados na circulação, T4 e T3 se ligam, de maneira reversível, a proteínas plasmáticas: globulina ligadora de tiroxina (TBG), transtirretina (TTR) e albumina. Aproximadamente 70% do T4 e 80% do T3 são ligados à TBG. Apenas 0,004% do T4 e 0,4% do T3 circulam na sua forma livre, que é a metabolicamente ativa.

A tireoide é controlada pela atividade do eixo hipotálamo-hipófise-tireoide. O TSH, produzido pelas células tireotróficas da hipófise anterior, liga-se a receptores específicos nas células tireoidianas e estimula a síntese do T4 e do T3, bem como sua liberação pela glândula. A síntese e a secreção do TSH, por sua vez, são inibidas pelos HT (feedback negativo) e estimuladas pelo hormônio liberador da tireotrofina (TRH), produzido no hipotálamo. Se a função hipotalâmico-hipofisária estiver intacta, pequenas alterações nos HT livres provocam grandes alterações nos valores séricos do TSH (relação log-linear). Por isso, o TSH constitui-se no melhor indicador de alterações discretas da produção hormonal da tireoide. A secreção do TSH é pulsátil e apresenta um ritmo circadiano, com os pulsos de secreção ocorrendo entre as 22h e as 4h.

DISTÚRBIOS TIREOIDIANOS

Diversas condições podem cursar com hipofunção ou hiperfunção tireoidianas e são facilmente diagnosticadas pela dosagem de TSH e T4 livre. A medida do T3 apenas é útil quando se suspeita de T3-toxicose (hipertireoidismo com T4 normal) ou tireotoxicose induzida pela ingestão de T3. Não é recomendado solicitar T3 reverso (rT3) na avaliação de função tireoidiana.

Hipotireoidismo é a síndrome clínica caracterizada pela deficiência de hormônios tireoidianos. Pode ser primário (HTP), quando resulta de condições que interfiram diretamente sobre a tireoide, ou central (por deficiência de TSH). O HTP responde por pelo menos 90% dos casos de hipotireoidismo. No HTP, sempre se observa elevação do TSH, associada à redução dos níveis de T4 livre, e o T3 pode estar baixo ou normal. Níveis altos de TSH, sem alteração dos HT, caracterizam o hipotireoidismo subclínico (HSC). Outras condições que podem cursar com TSH aumentado e T4 livre normal, simulando HSC, estão listadas no Quadro a seguir. Um cenário comum no qual se encontra essa associação é a baixa adesão ao tratamento com levotiroxina (L-T4). Nesses casos, a mensuração do TSH reflete um intervalo de 6 a 8 semanas de uso da L-T4 e a dosagem de T4 reflete o uso recente do medicamento. Assim, se o paciente vinha em uso intermitente de L-T4, mas fez uso no dia da coleta do exame, podemos encontrar TSH alto, apesar de T4 livre normal.

O hipotireoidismo central (HC) caracteriza-se por deficiente produção de TSH e pode resultar de patologia da região hipotalâmico-hipofisária, bem como de seu tratamento com cirurgia ou radioterapia. Laboratorialmente, manifesta-se por níveis baixos de T4 livre, enquanto o TSH, em geral, está baixo ou normal. No entanto, eventualmente pode estar discretamente elevado (em geral < 10 mUI/l). Nessa situação, o TSH tem atividade diminuída, não tem ritmo circadiano, mas mantém a imunoatividade. Dessa maneira, o TSH é pouco útil no diagnóstico e monitoramento do HC. O melhor parâmetro é o T4 livre.

Hipertireoidismo – As causas mais comuns de hipertireoidismo são a doença de Graves (DG), o bócio multinodular tóxico (BMNT) e o adenoma tóxico (AT). Nessas situações, existe produção autônoma de T3 e T4, que se manifesta por níveis suprimidos de TSH e elevação do T3 e do T4. Em alguns casos, o T4 pode estar normal, caracterizando a T3-toxicose. Supressão do TSH, sem modificação dos HT, é típica do hipertireoidismo subclínico (HSC), situação encontrada em 0,3 a 1% da população geral e em 2% dos idosos.

Excepcionalmente, o hipertireoidismo pode resultar de tumor hipofisário secretor de TSH (tireotropinoma). Nesses casos, o TSH encontra-se elevado (77% dos pacientes) ou normal. Nas tireoidites subagudas (TSA), ocorre destruição da tireoide, com liberação de hormônios pré-formados pela glândula, o que pode levar a supressão do TSH e elevação das concentrações de T3 e T4. Nesses casos, a distinção com os estados de hiperfunção é feita pela determinação da captação tireoidiana do Iodo131 (RAIU) nas 24 horas. Esta última se encontra muito baixa ou indetectável nas TSA e praticamente sempre elevada nas outras condições.

Doenças tireoidianas autoimunes (DTA) – As principais são a tireoidite de Hashimoto (TH) e a doença de Graves (DG). Têm em comum a presença de anticorpos antitireoidianos (TAb). Os principais TAb são os antitireoperoxidase (anti-TPO), antitireoglobulina (anti-Tg) e os contra o receptor do TSH (TRAb). A tireoperoxidase é a principal enzima envolvida na síntese dos HT. Anti-TPO e anti-Tg parecem ser consequência da lesão tireoidiana. Já os TRAb são responsáveis pela patogênese da DG, uma vez que o hipertireoidismo resulta da ligação de TRAb estimuladores ao receptor do TSH, com produção dos HT, independentemente do TSH. A doença mais frequentemente associada ao aumento de anti-TPO e anti-Tg é a Tireoidite de Hashimoto (TH), embora esses autoanticorpos também sejam encontrados em outras tireopatias, na população geral, especialmente em mulheres e familiares de pacientes com DTA. No hipotireoidismo autoimune não há indicação de monitorizar os anticorpos. Atualmente, a maior utilidade do anti-Tg é o seguimento dos carcinomas diferenciados de tireoide, uma vez que pode interferir na dosagem da Tg (nos métodos imunométricos, o anti-Tg leva a resultados falsamente baixos de Tg).

Condições extratireoidianas com interferência nos testes de função tireoidiana

  • Resistência ao hormônio tireoidiano – Condição rara caracterizada por reduzida resposta dos tecidos-alvo aos hormônios

    tireoidianos (HT). Resulta, em 85% dos pacientes, de mutações no gene do receptor do hormônio tireoidiano (TR).

  • Fatores ambientais: Jejum prolongado, dieta restritiva, desnutrição e anorexia nervosa diminuem as frações total e livre do T3. À medida que o T3 diminui, há um aumento do rT3. Não há alteração do TSH. Em contrapartida, dietas hipercalóricas, principalmente ricas em carboidratos, elevam T3, com aumento da termogênese basal.
  • Envelhecimento – No idoso saudável, há valores normais de T4, com TSH mais baixo do que nos indivíduos mais jovens.
  • Doenças não tireoidianas – Durante doenças agudas, a alteração mais comum e precoce dos testes de função tireoidiana (TFT) é a inibição da conversão de T4 em T3, com consequente queda do T3 total e livre e aumento do rT3.
  • Gestação – Alterações adaptativas fisiológicas na função tireoidiana acontecem durante a gravidez. Há aumento da síntese hepática da TBG, levando a um aumento nas concentrações de T3 total e T4 total. A gonadotrofina coriônica humana (hCG), produzida pela placenta, tem estrutura semelhante à do TSH e pode estimular a tireoide materna. Coincidindo com seu pico, no final do primeiro trimestre, pode ocorrer aumento do T4 livre e supressão do TSH.
  • Alterações nas proteínas transportadoras dos HT – Alterações quantitativas e/ou qualitativas das proteínas carreadoras dos HT resultam em aumento ou diminuição da fração total dos HT, sem alterar, contudo, a fração livre.
  • Presença de anticorpos – As principais classes de anticorpos que causam interferência nos ensaios de HT são os autoanticorpos e os anticorpos heterófilos. Entre os autoanticorpos, incluem-se o anti-T4 e anti-T3.
  • Medicamentos – Vários medicamentos podem interferir, por mecanismos distintos, no metabolismo, no transporte, na absorção e na ação dos HT, bem como na secreção do TSH. Exemplos: amiodarona, heparina de baixo peso molecular, fenitoína, carbamazepina e fenobarbital, furosemida e salicilatos em altas doses, glicocorticoides, propranolol, contrastes iodados, estrogênios, tamoxifeno, androgênios, lítio, biotina. Em usuários de levotiroxina, inibidores de bomba de prótons, hidróxido de alumínio, sequestrantes de ácidos biliares, sulfato ferroso, carbonato de cálcio, podem prejudicar sua absorção.

Edição 04. Abril/2024. Assessoria Médica – Lab Rede

Referência: 1. Gadelha PS; Montenegro RM. Interpretação dos Testes de Função Tireoidiana. In Endocrinologia clínica / Lucio Vilar [et al.] – 6. ed. – Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2016. 2. Burch HB. Drug Effects on the Thyroid. N Engl J Med. 2019 Aug 22;381(8):749-761. 3. Carvalho GA, Perez CLS, Ward ST. The clinical use of thyroid function tests. Arq Bras Endocrinol Metab. 2013;57(3):193-204

 

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